Literatura – A Arte da Crônica (crônica comentada)
À Beira-Mar
Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)
Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? (1) Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana (2), em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler “Maravilhas da Biologia”, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia.
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia. O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara (3) que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.
Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo (4).
— Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando muito — explicou o menininho, dando outra fungada.
O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.
— Não faça isso, meu filho — disse ele (e depois viemos a saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: — deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.
O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:
— Deixa eu jogar neles.
O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:
— Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.
O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse:
— Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.
— Por minha causa? — estranhou o chato (5). — Mas que casal é aquele?
— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas a mulher é a sua (6).
Texto extraído do livro “O melhor do Stanislaw” – A reprodução deste texto tem fins exclusivamente didáticos.
Notas: (1) Crítica amena que conduz à reflexão – (2) A marca do cronista carioca – (3) Ritmo carioca, linguagem coloquial, a norma culta não é respeitada – (4) Dialoga com o leitor como meio de agregar humor e ironia à narrativa – (5) O ridículo da coletividade à partir de um tipo individual – (6) Humor tipicamente brasileiro, parece uma piada.
Comentários: O humor tipicamente brasileiro predomina nas crônicas de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, que surgiu para retomar a linhagem dos cronistas da vida cotidiana; e para criticar os incultos cronistas sociais da época. Em seus textos, o humor tem a função de recuperar a poesia, confirmando que a crônica e seu contexto jornalístico são sempre uma realização literária. Outro recurso humorístico de Porto é a construção da frase num ritmo bem carioca em que a norma culta nem sempre é respeitada. Numa linguagem moleque, constrói uma comunicação nova e dinâmica. A maneira principal de explorar o coloquialismo pela via humorística está no diálogo com o leitor. Dialoga também com Osvaldo, o revisor imaginário: “Como é que se escreve? Veja aí, Osvaldo”. Suas crônicas mostram o ridículo da coletividade a partir de tipos individuais. Sem cansar o leitor, Porto o conduz a uma reflexão, oferecendo uma crítica amena, mas contundente. Nos dá uma válvula de escape e fala por nós, assumindo nossa indignação diante dos absurdos do dia-a-dia do brasileiro. Embora seja carioca, seus textos não falam só sobre o Rio, mas sobre o Brasil. (Por Alexandre Gennari)
Fonte: Este texto foi elaborado à partir dos estudos de Jorge de Sá sobre a crônica como gênero literário, parte integrante do livro “A Crônica” – Editora Ática – Série Princípios.
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